quinta-feira, 29 de março de 2007

DIÁRIO INTERMITENTE - I

No Chiado, em companhia de Ricardo Paulouro, que me entrevista para o Jornal do Fundão, sou abordado e felicitado por Vargas, um artista plástico que expõe os seus trabalhos na rua : « Já li o seu livro, é curioso, foi a seguir ao do João Garcia ( o alpinista) ...Ao lê-lo lembrei-me que você também sobe montanhas, mas imaginárias.»

segunda-feira, 12 de março de 2007

A DUPLA VONTADE DE MONSIEUR RAMOS - Conto Inédito III

Hoje que já vai longe esta história e que a minha obra ganhou consistência e está mais patente ao público em todas as livrarias rio de toda esta aventura e lembro-me de outra Sandra, “a puta virgem”, que eu conheci na Covilhã nos finais dos anos 60. Era uma belíssima rapariga do povo com os seus 18 anos remolhados e que tinha escapado à fábrica e ao pai saltando pela janela porque este dizia que ela era uma mulher da má vida...e era, só que era virgem! Lembro-me de uma vez, eu, o Marquês, o Paiva e o Xavier que era mais cómico que o São Sebastião varado, a termos levado ao Paúl num citroen boca de sapo e lá, eu a ter despido completamente e a ter colocado num altar ao ar livre que servia para as festas de verão. Fomos corridos de caçadeira por um velho sacristão mas como foram boas as trutas dessa pândega! Mais tarde encontrei-a em Lisboa e continuava virgem e na má vida. A virgindade, fruta condenada, não sei se durou muito ou pouco tempo...
Se estás viva, onde estás tu hoje Sandra?Hoje, enquanto bebia café sem açúcar, entre dois capítulos de um novo romance, pensei que a vida é sempre mágica e defensável, co-autora fiel e volante, como os conirrostros que voltam todos os anos ao sítio das nossas recordações sem fim.

quarta-feira, 7 de março de 2007

A DUPLA VONTADE DE MONSIEUR RAMOS - Conto Inédito II

Sandra, a comovente Sandra, sempre com a bíblia sagrada na mão, bíblia de Petrópolis, 49ªedição, testemunha de Jeová, mas nesse dia eu não vi nada só sei que ela me engatou como um robalo numa rede de arrasto. Andava eu a fazer compras com o meu carrinho vertiginoso quando observei que uma mulher loira de meia-idade me perseguia. Para onde eu ia, ela seguia também. Se eu ia para a prateleira dos produtos biológicos ela conduzia para aí. Se eu ia para a prateleira dos produtos de limpeza doméstica ela derivava para aí. Se eu ia para perto das arcas dos produtos congelados ou para as prateleiras das latas de conserva ela aparecia logo mais pertinente que a lua do meu Tejo. Para experimentar onde até ia o seu descaramento resolvi destravar-me até à secção dos vinhos e aí pus-me a escolher pacientemente um vinho alentejano. Pensam que ela desistiu? Ninrien. Acercou-se de mim, olhou resolutamente para o meu carrinho e pôs-se a imitar-me. Lia até ao fim todas as etiquetas dos vinhos alentejanos para ficar consciente de todas as potencialidades do néctar que transtorna as cabeças mais racionais. Tinha que lhe falar, talvez ela quisesse um conselho para comprar um vinho para o marido que lhe bateria depois de ter bebido sozinho a garrafa e foi precisamente isso (essa particularidade tipicamente portuguesa, a violência doméstica, em cada três mulheres uma é espancada) que me impediu. Foi pois ela que naturalmente me dirigiu a palavra. Via-se que estava interessada pela minha pessoa. “ Monte Velho ou Duas Herdades, o que é que escolheria?” perguntou-me ela resolutamente. Sabia que o Monte Velho era um vinho forte, poderoso, e que uma vez deglutidos dois copos o seu marido estaria apto para passar ao soco. Assim aconselhei-lhe o outro que não conhecia mas que não poderia atingir a potência do vinho tão conhecido dos arredores de Évora. Ela riu e colou-se a mim com a garrafa na mão: “ Tem um saca-rolhas em sua casa que me empreste, que o do meu marido foi para o lixo?” disse ela toda empenada. Achei tanta graça a esta proposta original que fiquei de repente sério a olhar o meu carrinho. E desatei também à gargalhada. É que no meu veículo sem carta cheio até ao cimo havia duas unidades de cada produto. Era o poder erosivo e encantatório da literatura. Mais tarde, já em minha casa, estendido o sofá da Moviflor, e ela já nua, ela reservava-me uma grande surpresa. Pois, acreditem ou não, ela tinha duas vaginas. Foi ela própria que mo disse ao fim do nosso primeiro “round”. E eu, cada vez mais espantado com a senhora, já longe da literatura, achando piada à situação pus-me a procurar a vagina número dois. Lá a achei facilmente e pus-me a gozar nela. Era uma sensação esquisita essa, era como um morto que ressuscita para fazer amor com duas esplêndidas gémeas numa paragem de autocarro em plena capital. Ou então como um fervente pedestriano que tem duas estradas só para escolher sendo ambas auto-estradas forradas de pele de bacalhau. Mas como o género humano se habitua a tudo, e sendo eu um homem de muitas experiências, nessa mesma tarde ri da situação enquanto ejaculava em duplicado. Tinha um vago pressentimento de que ela me tinha escolhido a mim porque vira a minha duplicidade, a minha dupla personalidade, estampada em produtos efémeros e miseráveis. Perguntei-lhe. Ela riu e disse que sim, que isso lhe lembrava o seu corpo sempre ávido...
Andei três meses com Sandra e um dia cortei as nossas relações porque já não tinha tempo para nada. Nem para meter cartas, nem para escrever. Vocês não sabem o que é uma mulher com duas vaginas, não se tem um fim-de-semana livre, nem domingos, nem feriados. É-se um autêntico escravo. Os jornais, que eu lia com voracidade, deixei-os de ler e o mundo para mim resumia-se agora à tremenda complexidade de duas vaginas molhadíssimas como os pinheiros do Caramulo no inverno se tornaram autênticos labirintos mitológicos. Quanto a ela, depois da doutrina sexual, quis endoutrinar-me religiosamente. E abrindo o livro de Petrópolis lia-me a batalha de Gelboé e a morte de Saul, Siceleg destruída e a inobservância do sábado, ou a elegia sobre a ruína de Jerusalém, Elias anuncia uma seca ou Jesus e Nicodemos... Terminámos quando ela um dia me começou a ler o Tobias, que é um dos sete livros deuterocanónicos...

quinta-feira, 1 de março de 2007

A DUPLA VONTADE DE MONSIEUR RAMOS - Conto Inédito I

Sou um homem muito estranho e com terríveis e abissais formas de emoção que às vezes quando se manifestam à superfície podem chocar muita gente. Vivi e assisti a inúmeros casos desses (claro que me deixaram sempre incomodado, uma vez em Nice abracei-me a uma palmeira pensando abraçar a Catherine Deneuve!) mas a história que eu vou contar passada toda num bairro típico de Lisboa é das mais sintomáticas pois como duas irmãs gémeas que entram num cemitério vazio de província ela lembra que a vida é mais singular e mais forte que a imaginação.Durante os quatro primeiros anos em que regressei ao país da confusão depois de um longo e produtivo exílio aconteceu-me passar longos meses fechado no meu pequeno apartamento a escrever tendo como única companhia o Tejo. O meu objectivo era regressar ao primeiro plano da literatura e foi assim que sacrifiquei muitas amizades. Durante o ano de 2002 mergulhei voluntariamente num longo romance sobre a minha cidade natal e durante esse período de tempo a minha concentração foi tão coagulante como a minha solidão. Saía só para meter cartas no correio, pagar alguma factura e claro, fazer compras em qualquer supermercado. Foi pois num desses pequenos supermercados de bairro que encontrei Sandra.